quarta-feira, 30 de maio de 2012

Uma vida sem violência: o desafio à segurança humana das mulheres

A violência contra as mulheres como obstáculo à segurança humana 

 

A ausência de medo, apontada como uma das condições fundamentais à segurança humana, introduz o tema da violência em geral e de formas particulares de violência que atingem de maneira diferenciada homens e mulheres. As vulnerabilidades e os obstáculos à segurança humana sob as perspectivas de gênero e de raça/etnia são potencializados quando consideramos o fenômeno da violência.
No Brasil, os homicídios e as mortes violentas são a primeira causa de óbito para a população masculina jovem, em especial nas camadas pobres. Nesse contexto, as taxas de homicídios praticados por estranhos ou por policiais e outros agentes públicos atingem majoritariamente homens negros jovens, o que explica, em parte, a menor expectativa de vida para a população masculina negra.
Para as mulheres, as mortes violentas, sejam por homicídios ou por acidentes, não representam taxas significativas nos óbitos femininos. São as doenças cardiovasculares, as neoplasias, principalmente o câncer de mama, bem como as doenças do aparelho respiratório que respondem como as principais causas de óbitos femininos. Embora a mortalidade associada à maternidade não esteja entre as dez primeiras causas de óbitos de mulheres esta ainda se mantém em patamares altos no Brasil, particularmente se considerarmos que cerca de 92% desses óbitos poderiam ser evitados por meio de cuidados rotineiros na gestação, no parto e no puerpério. Seriam mortes evitáveis em sistemas de saúde preventivos e seguros.
Publicação elaborada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) destaca que "A ausência da variável cor na maioria dos sistemas de informação na área da saúde tem dificultado uma análise mais consistente sobre a saúde das mulheres negras noBrasil".·. Essa publicação, citando dados da PNAD, de 1996, relativos à atenção ginecológica, chama atenção para o fato que do conjunto das mulheres que, no ano anterior à pesquisa, realizaram exames ginecológicos 37,1% eram brancas e 24,7% eram negras.
No que se refere à vitimização por eventos criminosos, a pesquisa realizada na década de 1980 pelo IBGE destacou um dado importante na diferenciação entre homens e mulheres. A grande maioria de crimes cometidos contra homens ocorre no espaço público, praticada por outro homem, com grande incidência de agressores desconhecidos. No caso das mulheres, a maioria dos crimes ocorre no espaço doméstico, cometidos por pessoas que privam da intimidade das vítimas, dentre as quais maridos e companheiros.
É no campo da violência de gênero que as diferenças entre mulheres brancas e mulheres negras, com alta ou baixa renda, diminuem para dar espaço a um padrão social que absorve a violência contra as mulheres como um dado da cultura, chegando mesmo a considerá-la uma não violência. Esse é um grave obstáculo para a segurança das mulheres brancas e negras e que, no entanto, nem sempre tem sido considerado nas estatísticas ou nas representações sociais.
Há consenso entre os defensores dos direitos humanos que a segurança de homens e mulheres deve significar a ausência do medo da guerra, do desemprego, da pobreza, da exclusão social e, por conseguinte, deve incluir o acesso à riqueza e aos direitos individuais e sociais, bem como aos bens culturais, ao progresso científico, à garantia de um meio ambiente saudável e sustentável. Muitos desses defensores avançam mais e apontam, como necessários à segurança humana, a ausência do racismo, do sexismo, da homofobia, e, por conseguinte, reconhecem a importância da garantia, do respeito e da tolerância à diversidade humana.
No entanto, ainda são poucos aqueles que incluem a referência à ausência específica da violência de gênero como elemento fundamental para a segurança das mulheres e da sociedade como um todo. De fato, essa referência relativa a uma vida sem medo para as mulheres tem sido pouco destacada em parte pela dificuldade de mensuração desse fenômeno e, em grande parte, por causa dos padrões culturais que negligenciam ou subestimam a ocorrência e as consequências dessas formas de violência. Por isso mesmo a percepção de que a segurança humana para as mulheres significa também a superação da violência de gênero necessita ser constante e fortemente destacada.
O Social Watch Report 2004 assinala que, muito frequentemente, as concepções de "desenvolvimento humano", "direitos humanos" e "segurança humana" têm como parâmetros experiências masculinas, deixando de conhecer as diferenças de gênero e não revelando sensibilidade para as questões de gênero na segurança humana.
Esse Relatório chama atenção para a necessidade de se identificar a violência contra as mulheres, inclusive na família, e os direitos reprodutivos das mulheres como questões cruciais para a integridade física das mulheres e como elementos centrais para sua segurança íntima e para a garantia dos direitos humanos fundamentais. Destaca, ainda, que a violência é uma questão de segurança muito diferente para mulheres e homens. O medo da violência, incluindo o assédio, é um constrangimento permanente sobre a mobilidade de milhões de mulheres e limita seu acesso aos recursos e atividades básicas.
Além disso, o Relatório assinala que a violência contra as mulheres é um dos mecanismos sociais principais para forçá-las a posições subordinadas comparadas àquelas dos homens. Em muitos casos, a violência contra as mulheres e as meninas ocorre na família ou na casa, onde muitas vezes é tolerada e silenciada. Por isso, a negligência, o abuso físico e sexual, o estupro de meninas, crianças e mulheres por membros da família ou pessoas próximas são sempre difíceis de serem detectados. Quando são denunciados, é frágil a proteção às vitimas ou a punição dos agressores.
A mais clara definição normativa de violência de gênero contra as mulheres se encontra na Convenção Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres - "Convenção de Belém do Pará", aprovada em 1994 pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Esta Convenção, que tem status legislativo nos países signatários, incorporou a definição contida na  Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, de 1993.
Pela Convenção de Belém do Pará entende-se por violência contra a mulher "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado". A partir dessa Convenção, considera-se violência física qualquer conduta que ofenda a integridade física de uma pessoa. A violência psicológica é definida como qualquer conduta que vise a degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outrem, por meio de ameaça direta ou indireta, humilhação, manipulação, isolamento ou que cause prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação e ao desenvolvimento pessoal. A violência sexual é compreendida como qualquer conduta que constranja uma pessoa a manter contato sexual físico ou verbal, ou a participar de relações sexuais com uso da força, chantagem, suborno, manipulação, ameaça direta ou indireta ou qualquer outro meio que anule ou limite a vontade pessoal. Essas formas de violência podem ocorrer na família, no trabalho, na sociedade ou nas instituições do Estado.
A Assembleia Geral da OEA, que aprovou essa Convenção, considerou que a violência de gênero contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens. Compreendeu, também, que a violência contra a mulher transcende todos os setores da sociedade, independentemente de sua classe, raça ou grupo étnico, níveis de salário, cultura, nível educacional, idade ou religião, e afeta negativamente as bases da própria sociedade.
Mesmo necessitando ser compreendida no conjunto das manifestações da violência e da exclusão estruturais que atingem homens e mulheres em sistemas sociais, econômicos e políticos injustos, a violência de gênero contra a mulher é um fenômeno específico que reflete as relações de poder, histórica e culturalmente, desiguais entre homens e mulheres.
Essa violência apresenta formas distintas de manifestações em contextos sociais específicos e, na maioria das vezes, é agravada por determinadas características das mulheres. Nesse sentido, torna-se necessário compreender que as mulheres não são um conjunto abstrato e indiferenciado de indivíduos do mesmo sexo, mas que também se diferenciam internamente e apresentam necessidades e vulnerabilidades distintas.
Com essa perspectiva é importante observar e refletir sobre a existência de diferentes patamares de segurança humana no Brasil, percebendo os distintos graus de vulnerabilidades. Com essa compreensão, a violência de gênero não pode ser pensada separadamente da violência racial que atinge de forma específica as mulheres negras e indígenas. Também é importante perceber que a violência de gênero se agudiza quando se constata a sua incidência sobre mulheres trabalhadoras urbanas e rurais, e, especialmente, sobre as meninas e adolescentes, grupo de grande vulnerabilidade social.
A violência de gênero contra as mulheres tem sido visibilizada, no Brasil, por pressão dos movimentos de mulheres, que demandaram por políticas públicas voltadas para a superação dessa violência e para a atenção às suas vítimas. Assim, desde meados da década de 1980, foram criados  delegacias de mulheres, abrigos e centros de atendimento social e psicológico, serviços de atendimento e de orientação jurídica, serviços de saúde voltados para o atendimento aos agravos da violência sexual que, apesar de ainda escassos, representam avanços importantes que devem ser valorizados e monitorados para seu aperfeiçoamento e ampliação.
Mesmo considerando a precariedade de dados estatísticos nacionais, em alguns estados da federação existem informações que permitem perceber a magnitude desse fenômeno embora de forma incompleta pela existência de eventos não notificados, não registrados pelas delegacias policiais ou registrados sem a indicação da raça/etnia das vítimas. Dados divulgados pela Fundação Perseu Abramo, para o ano de 2001, no que se refere à violência doméstica, indicam que, do conjunto das ocorrências investigadas de violência contra as mulheres, a responsabilidade dos parceiros, maridos ou companheiros, variava entre 53% a 70% dessas ocorrências dependendo da modalidade da agressão, reforçando o que a PNAD de 1988 indicou.
Dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, para o primeiro semestre de 2002, indicam que, do total das vítimas de crime de lesão corporal dolosa ocorrido no estado, nesse período, 33.7% eram homens e 66,2% mulheres. No que se refere à relação da vítima mulher com o agressor, em 93,8% das ocorrências registradas o agressor era pessoa conhecida e dentre os agressores conhecidos 62,2% eram agressores com os quais a vítima tinha envolvimento amoroso, incluindo casamento. Do conjunto das mulheres vítimas de agressões por pessoas com as quais mantinham vínculos amorosos 51,3% são brancas, 32,9% são negras e 13% são pardas o que revela que o dado racial não é uma variável explicativa para essa forma de violência. O perfil socioeconômico e o nível educacional das vítimas que denunciaram as violências revelam mulheres de baixa renda e de baixa escolaridade. No entanto, a violência doméstica e sexual não atinge apenas as mulheres pobres. O processo de invisibilidade da violência de gênero nas camadas de rendas média e alta e as estratégias das mulheres para lidarem com essa violência fazem com que suas características econômicas e culturais não estejam presentes no perfil de vítimas de violência doméstica e sexual. A violência de gênero nessas camadas sociais ganha visibilidade na mídia em situações extremas quando da ocorrência de homicídios praticados por maridos ou companheiros que, não raro, ainda alegam a tese da legítima defesa da honra.
No crime de estupro, dados de 2002, revelam que, no Rio de Janeiro, foram notificados à polícia cerca de 643 ocorrências no primeiro semestre desse ano, das quais 45,3% das vítimas eram mulheres brancas, 13,7% mulheres negras e 34,4% mulheres pardas, o que também indica que o dado racial não é uma variável explicativa para essa forma de violência nesse estado. O que esses dados demonstram é que a faixa etária mais agredida é a de jovens adolescentes. Nesse mesmo estado, no crime de estupro, verifica-se que 87% da violência sexual ocorreram em casa praticada por conhecidos e 46,4% fora de casa praticada também por conhecidos. O estupro por pessoa desconhecida é significativamente menor que aquele praticado por conhecido.
Os dados relativos às lesões corporais e aos estupros apontam para a "domesticidade" desses crimes e coloca um desafio para o debate sobre a violência urbana calcado na vítima masculina e cuja ocorrência se dá no espaço público.
Assim, para responder à questão sobre quais são os principais obstáculos à segurança humana no Brasil torna necessário considerar sempre um recorte de gênero e étnico/racial, incluindo particularmente a questão da violência de gênero contra as mulheres. Se a ausência de medo é um elemento chave para a segurança humana, o medo das mulheres em relação à violência responde tanto àquele medo de todas as pessoas em relação à violência no espaço público, como àquele medo da violência no espaço privado. A vivência desse duplo medo diminui em muito, para as mulheres, a força necessária para lutar pelo acesso às demais condições de segurança humana, restringindo seu protagonismo social. A violência de gênero contra as mulheres é, assim, um dos mecanismos sociais principais para mantê-las em posições subordinadas comparada com as dos homens. Tal como para os negros, para as mulheres, em grande medida, ainda impera a regra cultural discriminadora do "conheça o seu lugar", jocosamente associada ao fogão e à família - curiosamente o espaço doméstico onde, mesmo sendo o "seu lugar", não estão salvas das "correções".
No entanto, no debate nacional sobre o aumento da violência na sociedade brasileira e sobre as respostas institucionais a essa questão pouco ou quase nada tem dito sobre a violência de gênero contra as mulheres. Esse debate está sempre referido à chamada violência urbana visibilizada nos assaltos, furtos, roubos, homicídios, rebeliões em presídios, embates entre facções de narcotraficantes e polícia. São manifestações de violência que ocorrem no espaço público e mobilizam a mídia, a população em geral, os cientistas políticos, psicólogos, agentes governamentais, todos tentando apontar para soluções das mais diversas naturezas e clamando contra a impunidade dos violentos.
Nas ocorrências da violência de gênero contra as mulheres, em especial a violência doméstica e sexual, em grande medida ocultada pela dificuldade das vítimas em denunciá-las, são poucos os atores sociais que se manifestam e que buscam explicações e soluções. Em grande medida, essas ocorrências não têm sido consideradas violências ou práticas criminosas por considerável parcela da sociedade e de agentes governamentais e, por isso, os agressores não compõem o contingente de violentos no imaginário social.

Uma vida sem violência: um desafio para as mulheres, in Medos e Privações: Obstáculos à segurança humana, Relatório 2004, Observatório da Cidadania, IBASE, Rio de Janeiro.

Leila Linhares Barsted
Advogada, diretora da organização não-governamental Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia). Texto elaborado para o Observatório da Cidadania, 2004.


FONTE:Disponível em:<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/cidadania/0072.html>.

Postado por: MSUL Priscila

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