A violência contra as mulheres como obstáculo à segurança humana
A ausência de medo, apontada como uma das condições fundamentais à
segurança humana, introduz o tema da violência em geral e de formas
particulares de violência que atingem de maneira diferenciada homens e
mulheres. As vulnerabilidades e os obstáculos à segurança humana sob as
perspectivas de gênero e de raça/etnia são potencializados quando
consideramos o fenômeno da violência.
No Brasil, os homicídios e as mortes violentas
são a primeira causa de óbito para a população masculina jovem, em
especial nas camadas pobres. Nesse contexto, as taxas de homicídios
praticados por estranhos ou por policiais e outros agentes públicos
atingem majoritariamente homens negros jovens, o que explica, em parte, a
menor expectativa de vida para a população masculina negra.
Para as mulheres, as mortes violentas, sejam por homicídios ou por acidentes, não representam taxas significativas nos óbitos femininos.
São as doenças cardiovasculares, as neoplasias, principalmente o câncer
de mama, bem como as doenças do aparelho respiratório que respondem
como as principais causas de óbitos femininos. Embora a mortalidade
associada à maternidade não esteja entre as dez primeiras causas de óbitos de mulheres
esta ainda se mantém em patamares altos no Brasil, particularmente se
considerarmos que cerca de 92% desses óbitos poderiam ser evitados por meio de cuidados rotineiros na gestação, no parto e no puerpério.
Seriam mortes evitáveis em sistemas de saúde preventivos e seguros.
Publicação elaborada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) destaca que "A ausência
da variável cor na maioria dos sistemas de informação na área da saúde
tem dificultado uma análise mais consistente sobre a saúde das mulheres
negras noBrasil".·. Essa publicação, citando dados da PNAD, de 1996,
relativos à atenção ginecológica, chama atenção para o fato que do
conjunto das mulheres que, no ano anterior à pesquisa, realizaram exames
ginecológicos 37,1% eram brancas e 24,7% eram negras.
No que se refere à vitimização por eventos criminosos, a pesquisa realizada na década de 1980 pelo IBGE destacou um dado importante na diferenciação entre homens e mulheres. A
grande maioria de crimes cometidos contra homens ocorre no espaço
público, praticada por outro homem, com grande incidência de agressores
desconhecidos. No caso das mulheres, a maioria dos crimes ocorre no
espaço doméstico, cometidos por pessoas que privam da intimidade das
vítimas, dentre as quais maridos e companheiros.
É no campo da violência de gênero que as diferenças entre mulheres
brancas e mulheres negras, com alta ou baixa renda, diminuem para dar
espaço a um padrão social que absorve a violência contra as mulheres
como um dado da cultura, chegando mesmo a considerá-la uma não
violência. Esse é um grave obstáculo para a segurança das mulheres
brancas e negras e que, no entanto, nem sempre tem sido considerado nas
estatísticas ou nas representações sociais.
Há consenso entre os defensores dos direitos humanos que a segurança
de homens e mulheres deve significar a ausência do medo da guerra, do
desemprego, da pobreza, da exclusão social e, por conseguinte, deve
incluir o acesso à riqueza e aos direitos individuais e sociais, bem
como aos bens culturais, ao progresso científico, à garantia de um meio
ambiente saudável e sustentável. Muitos desses defensores avançam mais e
apontam, como necessários à segurança humana, a ausência do racismo, do
sexismo, da homofobia, e, por conseguinte, reconhecem a importância da
garantia, do respeito e da tolerância à diversidade humana.
No entanto, ainda são poucos aqueles que incluem a referência à
ausência específica da violência de gênero como elemento fundamental
para a segurança das mulheres e da sociedade como um todo. De fato, essa
referência relativa a uma vida sem medo para as mulheres tem sido pouco
destacada em parte pela dificuldade de mensuração desse fenômeno e, em
grande parte, por causa dos padrões culturais que negligenciam ou
subestimam a ocorrência e as consequências dessas formas de violência.
Por isso mesmo a percepção de que a segurança humana para as mulheres
significa também a superação da violência de gênero necessita ser
constante e fortemente destacada.
O Social Watch Report 2004 assinala que, muito frequentemente, as
concepções de "desenvolvimento humano", "direitos humanos" e "segurança
humana" têm como parâmetros experiências masculinas, deixando de
conhecer as diferenças de gênero e não revelando sensibilidade para as
questões de gênero na segurança humana.
Esse Relatório chama atenção para a necessidade de se identificar a
violência contra as mulheres, inclusive na família, e os direitos
reprodutivos das mulheres como questões cruciais para a integridade
física das mulheres e como elementos centrais para sua segurança íntima e
para a garantia dos direitos humanos fundamentais. Destaca, ainda, que a
violência é uma questão de segurança muito diferente para mulheres e
homens. O medo da violência, incluindo o assédio, é um constrangimento
permanente sobre a mobilidade de milhões de mulheres e limita seu acesso
aos recursos e atividades básicas.
Além disso, o Relatório assinala que a violência contra as mulheres é
um dos mecanismos sociais principais para forçá-las a posições
subordinadas comparadas àquelas dos homens. Em muitos casos, a violência
contra as mulheres e as meninas ocorre na família ou na casa, onde
muitas vezes é tolerada e silenciada. Por isso, a negligência, o abuso
físico e sexual, o estupro de meninas, crianças e mulheres por membros
da família ou pessoas próximas são sempre difíceis de serem detectados.
Quando são denunciados, é frágil a proteção às vitimas ou a punição dos
agressores.
A mais clara definição normativa de violência de gênero contra as
mulheres se encontra na Convenção Para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra as Mulheres - "Convenção de Belém do Pará", aprovada em
1994 pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Esta Convenção, que
tem status legislativo nos países signatários, incorporou a
definição contida na Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da
Violência contra a Mulher, de 1993.
Pela Convenção de Belém do Pará entende-se por violência contra a
mulher "qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte,
dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público
como no privado". A partir dessa Convenção, considera-se violência
física qualquer conduta que ofenda a integridade física de uma pessoa. A
violência psicológica é definida como qualquer conduta que vise a
degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de
outrem, por meio de ameaça direta ou indireta, humilhação, manipulação,
isolamento ou que cause prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação
e ao desenvolvimento pessoal. A violência sexual é compreendida como
qualquer conduta que constranja uma pessoa a manter contato sexual
físico ou verbal, ou a participar de relações sexuais com uso da força,
chantagem, suborno, manipulação, ameaça direta ou indireta ou qualquer
outro meio que anule ou limite a vontade pessoal. Essas formas de
violência podem ocorrer na família, no trabalho, na sociedade ou nas
instituições do Estado.
A Assembleia Geral da OEA, que aprovou essa Convenção, considerou que
a violência de gênero contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e
uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre
mulheres e homens. Compreendeu, também, que a violência contra a mulher
transcende todos os setores da sociedade, independentemente de sua
classe, raça ou grupo étnico, níveis de salário, cultura, nível
educacional, idade ou religião, e afeta negativamente as bases da
própria sociedade.
Mesmo necessitando ser compreendida no conjunto das manifestações da
violência e da exclusão estruturais que atingem homens e mulheres em
sistemas sociais, econômicos e políticos injustos, a violência de gênero
contra a mulher é um fenômeno específico que reflete as relações de
poder, histórica e culturalmente, desiguais entre homens e mulheres.
Essa violência apresenta formas distintas de manifestações em
contextos sociais específicos e, na maioria das vezes, é agravada por
determinadas características das mulheres. Nesse sentido, torna-se
necessário compreender que as mulheres não são um conjunto abstrato e
indiferenciado de indivíduos do mesmo sexo, mas que também se
diferenciam internamente e apresentam necessidades e vulnerabilidades
distintas.
Com essa perspectiva é importante observar e refletir sobre a
existência de diferentes patamares de segurança humana no Brasil,
percebendo os distintos graus de vulnerabilidades. Com essa compreensão,
a violência de gênero não pode ser pensada separadamente da violência
racial que atinge de forma específica as mulheres negras e indígenas.
Também é importante perceber que a violência de gênero se agudiza quando
se constata a sua incidência sobre mulheres trabalhadoras urbanas e
rurais, e, especialmente, sobre as meninas e adolescentes, grupo de
grande vulnerabilidade social.
A violência de gênero contra as mulheres tem sido visibilizada, no
Brasil, por pressão dos movimentos de mulheres, que demandaram por
políticas públicas voltadas para a superação dessa violência e para a
atenção às suas vítimas. Assim, desde meados da década de 1980, foram
criados delegacias de mulheres, abrigos e centros de atendimento social
e psicológico, serviços de atendimento e de orientação jurídica,
serviços de saúde voltados para o atendimento aos agravos da violência
sexual que, apesar de ainda escassos, representam avanços importantes
que devem ser valorizados e monitorados para seu aperfeiçoamento e
ampliação.
Mesmo considerando a precariedade de dados estatísticos nacionais, em
alguns estados da federação existem informações que permitem perceber a
magnitude desse fenômeno embora de forma incompleta pela existência de
eventos não notificados, não registrados pelas delegacias policiais ou
registrados sem a indicação da raça/etnia das vítimas. Dados divulgados
pela Fundação Perseu Abramo, para o ano de 2001, no que se refere à
violência doméstica, indicam que, do conjunto das ocorrências
investigadas de violência contra as mulheres, a responsabilidade dos
parceiros, maridos ou companheiros, variava entre 53% a 70% dessas
ocorrências dependendo da modalidade da agressão, reforçando o que a PNAD de 1988 indicou.
Dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, para o
primeiro semestre de 2002, indicam que, do total das vítimas de crime de
lesão corporal dolosa ocorrido no estado, nesse período, 33.7% eram
homens e 66,2% mulheres. No que se refere à relação da vítima mulher com
o agressor, em 93,8% das ocorrências registradas o agressor era pessoa
conhecida e dentre os agressores conhecidos 62,2% eram agressores com os
quais a vítima tinha envolvimento amoroso, incluindo casamento.
Do conjunto das mulheres vítimas de agressões por pessoas com as quais
mantinham vínculos amorosos 51,3% são brancas, 32,9% são negras e 13%
são pardas o que revela que o dado racial não é uma variável explicativa
para essa forma de violência. O perfil socioeconômico e o nível
educacional das vítimas que denunciaram as violências revelam mulheres
de baixa renda e de baixa escolaridade. No entanto, a violência
doméstica e sexual não atinge apenas as mulheres pobres. O processo de
invisibilidade da violência de gênero nas camadas de rendas média e alta
e as estratégias das mulheres para lidarem com essa violência fazem com
que suas características econômicas e culturais não estejam presentes
no perfil de vítimas de violência doméstica e sexual. A violência de
gênero nessas camadas sociais ganha visibilidade na mídia em situações
extremas quando da ocorrência de homicídios praticados por maridos ou
companheiros que, não raro, ainda alegam a tese da legítima defesa da honra.
No crime de estupro, dados de 2002, revelam que, no Rio de Janeiro,
foram notificados à polícia cerca de 643 ocorrências no primeiro
semestre desse ano, das quais 45,3% das vítimas eram mulheres brancas,
13,7% mulheres negras e 34,4% mulheres pardas, o que também indica que o
dado racial não é uma variável explicativa para essa forma de violência
nesse estado. O que esses dados demonstram é que a faixa etária mais
agredida é a de jovens adolescentes. Nesse mesmo estado, no crime de
estupro, verifica-se que 87% da violência sexual ocorreram em casa
praticada por conhecidos e 46,4% fora de casa praticada também por
conhecidos. O estupro por pessoa desconhecida é significativamente menor
que aquele praticado por conhecido.
Os dados relativos às lesões corporais e aos estupros apontam para a
"domesticidade" desses crimes e coloca um desafio para o debate sobre a
violência urbana calcado na vítima masculina e cuja ocorrência se dá no
espaço público.
Assim, para responder à questão sobre quais são os principais
obstáculos à segurança humana no Brasil torna necessário considerar
sempre um recorte de gênero e étnico/racial, incluindo particularmente a
questão da violência de gênero contra as mulheres. Se a ausência de
medo é um elemento chave para a segurança humana, o medo das mulheres em
relação à violência responde tanto àquele medo de todas as pessoas em
relação à violência no espaço público, como àquele medo da violência no
espaço privado. A vivência desse duplo medo diminui em muito, para as
mulheres, a força necessária para lutar pelo acesso às demais condições
de segurança humana, restringindo seu protagonismo social. A violência
de gênero contra as mulheres é, assim, um dos mecanismos sociais
principais para mantê-las em posições subordinadas comparada com as dos
homens. Tal como para os negros, para as mulheres, em grande medida,
ainda impera a regra cultural discriminadora do "conheça o seu lugar",
jocosamente associada ao fogão e à família - curiosamente o espaço
doméstico onde, mesmo sendo o "seu lugar", não estão salvas das
"correções".
No entanto, no debate nacional sobre o aumento da violência na
sociedade brasileira e sobre as respostas institucionais a essa questão
pouco ou quase nada tem dito sobre a violência de gênero contra as
mulheres. Esse debate está sempre referido à chamada violência urbana
visibilizada nos assaltos, furtos, roubos, homicídios, rebeliões em
presídios, embates entre facções de narcotraficantes e polícia. São
manifestações de violência que ocorrem no espaço público e mobilizam a
mídia, a população em geral, os cientistas políticos, psicólogos,
agentes governamentais, todos tentando apontar para soluções das mais
diversas naturezas e clamando contra a impunidade dos violentos.
Nas ocorrências da violência de gênero contra as mulheres, em
especial a violência doméstica e sexual, em grande medida ocultada pela
dificuldade das vítimas em denunciá-las, são poucos os atores sociais
que se manifestam e que buscam explicações e soluções. Em grande medida,
essas ocorrências não têm sido consideradas violências ou práticas
criminosas por considerável parcela da sociedade e de agentes
governamentais e, por isso, os agressores não compõem o contingente de
violentos no imaginário social.
Uma vida sem violência: um desafio para as mulheres, in Medos e
Privações: Obstáculos à segurança humana, Relatório 2004, Observatório
da Cidadania, IBASE, Rio de Janeiro.
Leila Linhares Barsted
Advogada, diretora da organização
não-governamental Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação
(Cepia). Texto elaborado para o Observatório da Cidadania, 2004.FONTE:Disponível em:<http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/cidadania/0072.html>.
Postado por: MSUL Priscila
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